Wednesday, September 26, 2007

Na Morte de Ruy Belo

Mario Viegas - Na ...


«Provavelmente já te encontrarás à vontade entre os anjos
E com esse sorriso onde a infância tomava sempre o comboio
Para as férias grandes, já terás feito amigos sem saudades dos
Dias onde passaste, quase anónimo e leve como o vento da praia
E a rapariga de Cambridge, que não deu por ti ou se deu
Era de Vila do Conde.
A morte, como a sede, sempre te foi próxima.
Sempre a vi a teu lado, em cada encontro nosso, ela ali estava,
Um pouco distraída, é certo, mas estava, como estava o mar
E a alegria ou a chuva nos versos da tua juventude.
Só não esperava tão cedo vê-la assim, na quarta página de um jornal
Trazido pelo vento, nesse Agosto de caldelas, no calor do meio dia;
Jornal onde em primeira pagina também vinha a promoção de um militar
A general ou talvez dois, ou três ou quatro, já não sei.
Isto de militares custa a distingui-los, feitos em forma como os galos de Barcelos Igualmente bravos, igualmente inúteis, passeando de cú melancólico pelas ruas
A saudade e a sífilis do império e tão inimigos todos daquela festa que
Em ti, em mim e nas dunas principia.
Consola-me, ao menos a ideia, de te haverem deixado em paz na morte.
Ninguém na Assembleia da República fingiu que te lera os versos.
Ninguém cheio de piedade por si próprio propôs funerais nacionais
Ou a título póstumo te quis fazer Visconde, Cavaleiro, Comendador,
Qualquer coisa assim, para estremar os campos.
Eles não deram por ti e a culpa é tua. Foste sempre discreto, até mesmo
Na morte. Não mandaste à merda o país nem nenhum ministro.
Não chateaste ninguém, nem sequer a tua lavadeira e foste a enterrar
Numa aldeia que não sei onde fica, mas seja onde for será a tua.
Agrada-me que tudo assim fosse.
E agora que começaste a fazer corpo com a terra,
A única evidência é crescer para o sol.»



Eugénio de Andrade

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