Thursday, August 09, 2007

Navio de Sal

«Quando eu era pequeno, vinha o navio de sal,
Era um acontecimento!
E meu tio António Machado ia sempre ao areal
Com o seu óculo de alcance desencanudado a barlavento.
Era um iate cheio de cordas e de velas,
Chamado Santo Amaro, o Veloz ou o Diligente,
E, como trazia o sal, que é o sabor das panelas,
Era esperado tal qual como se fosse um ausente.
Na barra do horizonte era um ponto sozinho,
Mas crescia no vento a sua vela crua,
E o sol, ao morrer, tingia-lhe de vinho
A proa que vestia a pau a vaga nua.
Ali vinha, do Alto, sem sextante nem erro,
Enchendo devagar as previstas derrotas,
E plantava no fundo a sua raiz de ferro
Fazendo abrir no céu como flores as gaivotas.
As raparigas sãs da ribeira do mar,
Que traziam na pele um aroma silvestre,
Punham os olhos muito compridos, a cismar,
Nas cordas que secavam as roupas íntimas do Mestre.
Os pescadores mediam com a linha das pestanas
O tamanho do Audaz, a sua popa alceira:
Nunca tinha arribado àquelas praias insulanas
Tanto pano de verga, tanto oleado, tanta madeira!
Por isso a Vila, abrindo nas rochas duras
A branca humanidade das suas nocturnas casas,
Se encostava ao bater daquelas velas escuras
Como o corpo de um pássaro se deixa levar pelas asas.
(...)»



Vitorino Nemésio

O Bicho Harmonioso (1938)