Monday, March 26, 2007

Carta (excerto)

"E se a noite, estiver fria, abriga-te nessa entrada onde os cães
se recolhem, dando o calor do seu bafo aos vagabundos. Mas
se os cães te rosnarem, não te sentes junto deles, limita-te a roubar-
-lhes um pouco de calor, que poderás levar contigo para a rua,
onde terás de tomar cuidado para não escorregar no
gelo. Esse, podes pensar, é o inconveniente da noite; mas
enganaste. À noite, o frio é mais suportável do que durante
o dia, porque da noite não se espera outra coisa; enquanto que
o sol, caindo sobre o teu corpo com o brilho glacial do
Inverno, entrará por ti dentro, até à alma, obrigando-te
a olhar à tua volta, e a perguntar por que razão o mundo
está ao contrário. O problema é que não é a Terra que voltou
a parar, para que o Sol começasse a andar à sua volta; tu
pelo contrário, é que estás imóvel, incapaz de efectuar
o teu movimento de rotação em torno da vida, para
que ela te aqueça com o seu impulso. Então, não te
esqueças de que a noite pode ser a tua última hipótese
de sobrevivência, sobretudo se a névoa começar a
subir dos passeios, e a abraçar-te com o sopro húmido
dessa terra que te deseja, e que terás de pisar, saindo
do alcatrão e avançando pelos canteiros, onde sentirás
que os teus pés se enterram num colchão de ervas e de
húmus. É possível que algum cão te siga, como se
tivesse adoptado a tua solidão. Não o afastes, pelo menos
enquanto a noite durar, porque também para os cães
a noite pode ser fria. Esse é o cão que fala contigo
mesmo que não ladre: limita-te a olhá-lo, aproveitando
a luz fosca de um candeeiro; e talvez encontres, no
mais fundo dos teus olhos, a dor que te atormentava,
para que vejas que ela saiu de dentro de ti e reside
agora no corpo desse animal que não irás alimentar,
a quem não fazes nenhuma festa, e que te vai deixar
na próxima esquina, levando nele a dor que lhe passaste."


Nuno Júdice

No comments: