Sunday, November 12, 2006

Corpo de Deus

" A minha unha tem crescido tanto
e entretanto vim morrendo pouco a pouco
temi amei preocupei-me com problemas
fui feliz vivi a vida emocionei-me
Venceram-se diversas prestações
A minha poesia é por vezes mínima e mesquinha
Aqui estou eu perdido na contemplação da unha
A unha pequenina a que regresso sempre
Não canto armas nem barões nem mesmo este mar
que desdobradamente aqui vem rebentar
em ondas de água azul em algas e pedrinhas
Afinal tão instrutivo é
perder-me na contemplação do pé
descalço aqui à doce beira-mar
como aprofundar os mistérios deste dia
em que cristo instituiu a eucaristia
E eu comecei o dia à procura de livros
preocupado com contas a pagar
sem bem saber de mim nem do que é meu
(Falo muito de mim e de várias maneiras
algumas delas transpostas fantásticas fingidas
mas quem há-de morrer e quem é que nasceu
mais presente a mim próprio do que eu?)
Havia porventura de me recordar
da ceia do senhor do pão do vinho?
O meu pão é todo deste deste dia
E vou buscá-lo em contemplação da unha:
crescem mais as dos pés do que as das mãos
Serei eu que as corto menos vezes?
Será e terá sido sempre assim com toda a gente?
Cristo terá alguma vez sabido isso?
Doer-lhe-ia o pé ao instituir a eucaristia?
Mas o meu pão é todo deste dia
e doem-me muito mais os meus dois pés
do que o corpo de cristo embora meu amigo
Sermões e procissões interpretações doutrinais
talvez mundo perdido para nunca mais
aqui junto do mar junto dos meus
mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus"


Ruy Belo

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