Monday, May 22, 2006

Manifesto III

Eles têm olhos, boca, nariz e do aspirador saltitante dos cabelos rebeldes
Nascem carapuças de Deuses furiosos pela entrada do novo ano,
Como se, aprendizes dos foguetes, morressem numa praia distante e perto
Como a célebre metáfora do “morrer na praia” rente às rochas, quase a chegar ao cimo,
Aonde se encontravam as armas para o fim do jogo.
Eles têm olhares, sabores, cheiros; uma família inteira à espera
Sentada no muro com as pernas caídas e as flores nas mãos para os brindar
Quando chegam cansados de mais um dia de trabalho.
E eles têm nomes e casas e camas e amigos, muitos amigos, e muitas compras
Para fazer e muitos sítios para ir e centenas de abraços para dar.
Eles têm corpos e neles têm braços e depois têm mãos e têm um gesto,
Um gosto, um estilo; qualquer coisa indizível, um grito sem voz, uma vela na entrada de casa
Eles têm gatos e cães e filhos e um peixe no aquário; uma senhora que lhes limpa a casa às segundas e outra que lhes vende o bolo para os almoços de Domingo.
Eles têm tudo. Só não me têm a mim. Encerrada num canto da casa, só eu, o papel e o lápis; eu e esta atitude vergada de epíteto; eu e este personificar analítico; eu e esta vontade de furar o papel até ao coração e arrancá-lo de descobertas e redescobertas e enchê-lo de pó e devolvê-lo em areia;
Eles têm tudo, mas não me têm a mim. Eu vaso. Eu raio. Eu isto.
A que se dobra nos joelhos e chora;
A que morre ao canto da sombra em desmazelo;
A que se afoga em palavras para não ter que dizer que mais isto e mais aquilo;
A que não diz porquê mas parece que
Eu, a apaixonada, a etérea, a vulgar.
Eu, a que adormeço nos bancos do jardim, porque os pés dormem à beira de água com medo de subir as ravinas.
Eu, a que não sou de lado nenhum. Eu, que trago as camisas vincadas, dobradas e amarrotadas, porque as passeio comigo, abotoadas, para eu não fugir de mim; eu a que me duvido, a que me persigo, a que me sinto, qual rádio na estação do meio, aonde o meu ruído, quando respiro, dói e chora.
Eu a que me penso aos quadrados, como se fora, um bocado de pão e os pássaros, esfomeados, me viessem bicar em busca de sal e erva.
Eu, a que aqui, às duas da manhã de um Domingo, me levanto e digo:
Não mais os poemas deles, enfiados em circunstâncias irreais; não mais os floreados antiquados; as curvas das linhas que não faço direitas; não mais os passinhos trituradores das moscas na mesa de vidro, enquanto fumo cigarros atrás de cigarros, como quem come amendoins de casca.
Não mais.
Não os quero mais. Esses loucos que me enchiam a casa de gargalhadas e me trituravam a pele com sibilantes arredondadas, quebrando regras, destruindo estradas de versos, arrancando-me metáforas.
Rua! Chega! Basta. Não quero mais floreados; romances de antologia; poemas de rima cruzada, esgotando olhos, bocas narizes pernas. Cansei-me das vírgulas entre dentes, dos travessões disfarçados de almirantes e da tristeza dos barcos à deriva no mar dos temas, das formas e das teorias.
A minha escola não é essa. Concreta. Abstracta. Dicotómica. Trago em mim um nervoso miudinho tal, que se, acaso, eles não se calarem eu mato-os um a um.
Poema a poema morrerá na página do meu livro agrafado.
E faço-o sem dó nem piedade; pleonasmo ou aliteração.

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